No mês de outubro que se encerra, houve destaque para duas datas que celebram pautas de interesse à comunidade geocientífica: o Dia Internacional para a Redução do Risco de Desastres, em 13 de outubro, e o Dia Internacional da Geoética, em 12 de outubro. Esses temas se interseccionam, e a participação efetiva de geocientistas nessas áreas do conhecimento se faz fundamental. Para além da comunidade geocientífica, a emergência desse debate mobiliza a necessidade de aproximação com o poder público, as empresas privadas e a sociedade como um todo.
De acordo com o último levantamento da Base Territorial Estatística de Risco (BATER), desenvolvida em uma parceria entre o Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (CEMADEN) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que 8.270.127 pessoas e 2.471.349 domicílios estavam expostos ao risco de desastres de origem hidrometeorológica no Brasil em 2010 [1].
Segundo relatório da Organização Meteorológica Mundial e do Escritório da Organização das Nações Unidas para Redução do Risco de Desastres (UNISDR), as mudanças climáticas e os consequentes eventos extremos causaram um aumento no número, na frequência e na magnitude dos desastres socionaturais nos últimos 50 anos. Ainda segundo o estudo, mais de 11 mil desastres reportados foram atribuídos a eventos climáticos, com pouco mais de 2 milhões de mortes e 3,47 trilhões de dólares em perdas. Mais de 91% das mortes ocorreram nos países chamados subdesenvolvidos, evidenciando como os impactos econômicos e ambientais afetam as diferentes regiões ao redor do mundo de maneira desigual. Geógrafos como Milton Santos e David Harvey descrevem, desde o século XX, como as desigualdades sociais se materializam espacialmente, refletindo e inscrevendo a injustiça socioambiental nos territórios de acordo com a divisão internacional do trabalho – que divide os países do centro e da periferia do sistema capitalista.
Uma pesquisa desenvolvida pelo Instituto Pólis (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais) traz uma análise qualitativa e quantitativa das condições de vulnerabilidade que tornam determinados grupos mais suscetíveis aos riscos ambientais deflagrados por fenômenos climáticos. Essa análise evidencia as disparidades econômicas, de gênero e étnico-raciais que afetam a população marginalizada nas áreas urbanas, amplificando o potencial das perdas causadas por desastres de acordo com o marcador social. Assim, considerar o contexto histórico, social e político é de suma importância para se pensar a governança para a redução do risco a desastres. Isto porque, para a classificação do risco, leva-se em conta dois fatores: perigo ou ameaça (tais como as condições geofísicas do ambiente) e vulnerabilidade (tais como as condições de infraestrutura da habitação e do seu entorno e as condições psicossociais e econômicas dos habitantes).
Em outras palavras, o risco é a probabilidade de ocorrência, em uma área suscetível, de consequências negativas causadas por fenômenos naturais à população sensível a esses eventos (como os movimentos de massa, as inundações e as secas). Contudo, a magnitude do risco e do desastre é diretamente proporcional à vulnerabilidade socioambiental da população exposta. Portanto, afirma-se que os impactos resultantes de desastres socionaturais nas cidades são produtos da ação humana, e não somente de eventos climáticos extremos. Nesse sentido, a tomada de decisão participativa, democrática, informada e cientificamente embasada torna-se essencial para a promoção da justiça socioambiental, bem como para o fortalecimento da resiliência climática.
Reconhecendo o enorme contingente populacional global exposto aos riscos e a magnitude dos impactos socioeconômicos, psicossociais e ambientais causados pelos desastres resultados de eventos climáticos e hidrológicos extremos, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece, desde 1989, o dia 13 de outubro como o Dia Internacional da Redução do Risco de Desastres. O principal objetivo do calendário é impulsionar os debates e ações de fortalecimento acerca da resiliência de ecossistemas frente aos desastres – inclusive os ecossistemas urbanos. Em face disso, em 2023 foi lançada a campanha com o tema “Combater a Desigualdade para um Futuro Resiliente”.
A resiliência emerge nas pesquisas sobre desastres socionaturais enquanto um conceito que busca refletir sobre como lidar com as dinâmicas que surgem após perturbações causadas por um evento na natureza. Na perspectiva de sistemas socioecológicos, que parte da interdependência entre sociedade, geossistema e ambiente construído, a resiliência surge como um conceito-chave para se pensar formas de recuperação e reconstrução que buscam não somente retornar à normalidade pré-desastre, mas questionar a vulnerabilidade e a precariedade habitacional tidas como situação de “normalidade” pré-desastre.
Em vista disso, a intersecção entre os debates sobre planejamento urbano para redução do risco a desastres, geoética e resiliência climática se faz necessária. É urgente que comecemos a agir. Todavia, como as mudanças climáticas vêm tornando os desastres socionaturais mais intensos e mais frequentes de maneira acelerada, a governança dos riscos exige uma práxis coletiva atenta, crítica, resolutiva e disruptiva. Para tanto, é preciso construir espaços de diálogo para pensarmos como construir outros modos de gestão territorial mais efetivos, que fortaleçam a resiliência dos ecossistemas urbanos diante do enfrentamento da crise climática global.
Desastre ocasionado por evento climático e hidrológico extremo. Foto de Chris Gallagher, distribuída gratuitamente pela Unsplash.
Como ferramentas, a comunicação e a divulgação do pacto científico de geoética se tornam importantes aliadas. Isto porque, de maneira mais essencial, pensar novos modos de gestão dos territórios onde habitamos envolve a discussão sobre outras maneiras de nos relacionarmos com a Natureza. Dito de outro modo, diz respeito a uma nova ética da Natureza, um novo pacto civilizacional para construirmos outros futuros possíveis para as gerações da posteridade – de seres vivos humanos e não-humanos.
Em 2017, a Associação Internacional para Promoção da Geoética (AIPG) – principal instituição internacional promotora do debate da geoética – homologou o dia 12 de outubro como o Dia Internacional da Geoética. Em artigo publicado em 2019, os geocientistas Di Capua e Peppoloni definem a geoética como um comportamento profissional e científico guiado por valores éticos e morais em face das atividades relacionadas à geosfera. Esse eixo humanístico complementa as reflexões técnicas, enriquecendo as discussões sobre políticas públicas que dependem diretamente dessas ciências e que afetam a sociedade, tomando a natureza como membro de uma comunidade moral que se opõe a interesses pessoais e mercantilistas – como salienta a pesquisadora Nataliya Nikitina, em seu livro “Geoética: teoria, princípios e problemas”.
Eduardo Marone e Luis Marone, no artigo “Um roteiro para um código deontológico para geocientistas que lidam com riscos naturais”, publicado em 2014, afirmam que é necessário um Código Geoético para a comunidade técnico-científica, em especial para geocientistas que estudam e atuam na área de riscos socionaturais. Para os autores, deve-se, ainda, informar e preparar a sociedade para traduzir as descobertas científicas no intuito de uma pactuação em torno dessa ética de respeito à natureza. Consequentemente, a divulgação científica se torna uma ferramenta aliada. Por fim, esses elementos evidenciam como a geoética compreende um debate contemporâneo para a comunidade geocientífica. Indo a esse encontro, a edição de 2023 do Dia Internacional da Geoética promovido pela AIPG teve como slogan: “Fomentando a importância das Geociências para a sociedade”.
Para além da comunidade geocientífica e da população direta e indiretamente afetada pela crise ecológica global, outros atores políticos também têm responsabilidade e função na mitigação dos impactos das mudanças climáticas e ambientais. Dentre esses atores com poder de agência estão os órgãos multilaterais, o poder público nacional (nas esferas federal, estadual, municipal e local de gestão – como prevê o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil) e as empresas privadas. Por meio deste último, há espaço e demanda para o desenvolvimento no setor privado de programas de inovação social, com a adoção de planos estratégicos de gestão empresarial voltada à mitigação da crise climática. Para tanto, a tomada de decisão e o plano de ação da empresa devem envolver a regeneração ecossistêmica (como as soluções baseadas na natureza), a democratização da gestão, a melhor distribuição do excedente econômico, o desenvolvimento social e humano sustentável e a promoção da justiça socioambiental. Esses princípios de gestão empresarial vão de encontro com os objetivos do desenvolvimento sustentável preconizados pela ONU.
Os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram estabelecidos durante a comemoração dos 70 anos da ONU em 2015, com a meta de serem cumpridos até 2030. Dentre os ODS que envolvem a atuação direta do conhecimento geocientífico na pauta de redução do risco a desastres, destacam-se: garantir água potável e saneamento (ODS 6), tornar as cidades resilientes e sustentáveis (ODS 11), combater as mudanças climáticas (ODS 13), conservar mares e oceanos (ODS 14) e incentivar o uso sustentável de ecossistemas abrigados na geosfera (ODS 15). Esses objetivos afirmam a responsabilidade dos geocientistas perante a sociedade. De maneira transversal, a busca pela erradicação da pobreza (ODS 1), pela igualdade de gênero (ODS 5) e pela redução das desigualdades (ODS 10) também sustentam uma ética da Natureza.
Desse modo, recorrer a um Código Geoético alinhado com esses objetivos se torna primordial na comunicação e na tomada de decisões que tenham como princípio a sustentabilidade e a resiliência dos ecossistemas. Em vista disso, há que se debater, ao mesmo tempo, a necessidade de transformações curriculares acadêmicas, no intuito de formar profissionais atentos às demandas e aos debates contemporâneos e capacitados para a resolução dos problemas que se impõem diante da crise climática e ambiental.
No início da década de 1980, uma cooperação entre a Sociedade Brasileira de Geologia (SBG) e o Ministério da Educação (MEC) culminou na elaboração de um documento norteador com diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação em Geologia e Engenharia Geológica. Entre os textos elaborados pela SBG sobre o Currículo Mínimo, resultados de fóruns de discussões, afirma-se que qualquer mudança curricular só terá significado se contar com a participação da maior parcela possível da comunidade interessada – mais detalhes sobre isso são explicitados no artigo do geólogo, professor e pesquisador da UNICAMP, Celso Carneiro, publicado em 2014 na Revista Terrae Didática.
Cerca de 40 anos após a cooperação entre SBG e MEC, os cursos de graduação e a atuação profissional em Geologia ainda são conduzidos, majoritariamente, pela instrumentalização de conhecimentos exploratórios extrativistas (seja a exploração mineral, seja a petrolífera, seja a ciência de base que baliza os profissionais para esta atuação). Conhecimentos exploratórios, esses, que tomam a natureza como fornecedora de recursos erroneamente tidos como infinitos e sob um viés mercadológico.
Exemplo disso é que, diante do atual cenário de crise ambiental que emerge no Antropoceno, das mudanças climáticas, dos problemas ambientais urbanos e dos desastres socionaturais, as disciplinas de Geoética, Geologia Urbana e Climatologia não constam nas grades curriculares da maioria dos cursos de Geologia. Ademais, na proposta original da SBG para o Currículo Mínimo, os documentos elaborados preveem que os cursos devam garantir “uma formação polivalente voltada para as necessidades do país na área de Geologia”. Tendo em vista que o currículo acadêmico é um projeto cultural, revisões curriculares periódicas são necessárias para incorporarmos conceitos, reflexões e teorias que evoluem continuamente na sociedade e na ciência, promovendo novas perguntas e trazendo novas demandas.
Para concluir, este ensaio busca tão somente amplificar a emergência da geoética entre nossos pares, suscitando reflexões contemporâneas, interdisciplinares e fundamentais. No que concerne aos profissionais técnico-científicos, acadêmicos, discentes, docentes e pesquisadores das Geociências, cabe a incorporação desse debate para a construção de uma ciência do nosso tempo, rumo ao desenvolvimento social sustentável.
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[1] Os dados se referem à 2010 porque a base de dados geográficos da BATER foi elaborada a partir do universo amostral viabilizado pelo Censo Nacional do IBGE. Cabe dizer que o atraso da última campanha do censo demográfico, que seria realizada em 2020, também atrasou a atualização da base de dados na plataforma.
Esse texto não reflete necessariamente um posicionamento da ABMGeo.
Esse texto é de autoria de:
Ananda Andrade Cordovil
Técnica em Mineração pelo IFG, graduanda em Geologia pela UFG, no qual desenvolve pesquisas sobre Geoética e Análise de Vulnerabilidade Ambiental. É membra da Associação Internacional para Promoção da Geoética. Atua colaborando com a organização do Núcleo Goiás da ABMGeo.
Talita Gantus de Oliveira
Geóloga pela UFOP, mestra em Geologia Ambiental pela UFPR e doutora em Geociências pela UNICAMP. Atualmente, cursa especialização em Jornalismo Científico no Labjor/UNICAMP. Atua como educadora ambiental, pesquisadora, consultora técnico-científica e comunicadora de ciência.
Parabéns garotas! Muito bom ver uma nova geração agarrada à causa de respeito à vida no planeta, com argumentação fundamentada e clareza na exposição de ideias. vida longa a vocês e à ABMGEO
Agradeço muito pela oportunidade e pelo carinho da Talita na elaboração do texto. Sempre muito cordial e atenciosa! Espero que nossos leitores se interessem pela Geoética e que isso possa ajudar a construir cidades resilientes e comunidades confiantes na ciência! 💜
Assunto pertinente e muito esclarecedor. Parabéns Ananda e Talita.
Excelente texto!
Muito bom, gostei muito do tema abordado!